Senhor jornalista

terça-feira, julho 01, 2025

Onde o reconhecimento é só de si.

TIREI DE TI

por Celso Corrêa de Freitas

Era um lugar perdido entre o começo do nada e o fim do mundo.

Cravada ao pé de uma serra grande e silenciosa, no coração de um país que se esqueceu de olhar no espelho.

Apesar da qualidade de vida invejável, os moradores de TIREI DE TI pareciam alérgicos a iniciativas coletivas. Cada um por si. E cultura? Cultura era só mais um pretexto para ocupar a praça e alimentar o próprio ego.

Na cidade, todo agente cultural sonhava em realizar algo no epicentro: a praça principal, o Teatro, ou a Biblioteca. Os mais atrevidos até brigavam por espaço no coreto ou nos jardins públicos. Havia quem criasse algo novo, mas a maioria apenas reciclava o que já tinha sido feito — às vezes nem isso.

TIREI DE TI tinha de tudo:

Quadris sacolejantes de danças ciganas e do ventre.

Grupos de poesia falada.

Literatura  e música para todo gosto, até com linguagem caipira.

Teatro, e Artistas Plásticos buscando reconhecimento e plateia, o que estava em falta para todos.

A liderança comunitária mais barulhenta era Dona Etelvina, mulher de fala afiada, que não perdia oportunidade de lembrar:

— Evento vazio é como reza sem fé.

Seu Ananias, que passava a vida encostado em uma esquina, retrucava com calma:

— Nem sabia que hoje tinha aquele tal de “Pompas Deslumbrantes”. E se soubesse, também não ia. Prefiro as circunstâncias.

Circunstâncias, aliás, também em vias de extinção.

As lideranças culturais andavam inquietas. E se Dona Etelvina era espinho, um problema ainda maior crescia como mato no verão: a completa ausência de público nos eventos locais.

Foi então que, em uma rara união, decidiram tomar uma medida drástica — e coletiva. Algo quase inimaginável na cidade.

A data escolhida para a mudança foi 27 de abril, dia da Hiena Giorgina, animal-símbolo da cidade.

Segundo a lenda, uma hiena encontrou um homem estrangeiro à beira da morte, perdido naquela mata densa. Ao invés de atacá-lo, aqueceu-o com seu corpo e o alimentou com seu leite.

O homem, salvo, chamava-se Plácido Parreira Ponte, o popular senhor PPP.

E ali, onde havia apenas natureza bruta, ele fundou um vilarejo. Em homenagem ao gesto da hiena, batizou o lugar de TIREI DE TI — por ter tirado da morte a própria vida.

Ironia ou não, em TIREI DE TI ninguém reconhecia o que o outro fazia.

Cada um seguia seu caminho, seus eventos, sua bolha.

Mas a nova medida mudou o jogo:

Todos os idealizadores de eventos passaram a convidar formalmente os demais, com data, local e hora, divulgando amplamente as atividades culturais pela cidade.

E não é que deu certo?

O que antes era feito para poucos, passou a ser para todos.

O que ninguém conhecia, passou a ser comentado nas padarias.

O que era solitário, virou coletivo.

Aos poucos, os eventos culturais tornaram-se os mais frequentados da cidade e da região.

E, vejam só: os criadores agora até reclamam da falta de espaços para acomodar tanta gente.

Aliás, falando nisso…

Acabei de receber um convite para uma Roda Literária.

Bora agendar?


 

Nenhum comentário:

TIREI DE TI por Celso Corrêa de Freitas Era um lugar perdido entre o começo do nada e o fim do mundo. Cravada ao pé de uma serra grande...